terça-feira, 5 de agosto de 2008

SOL PARA OS PRÓXIMOS DIAS

Para Henrique

Sexta-feira. Fim de tarde de céu nublado. Escutam-se passos na calçada. O som metálico de uma caixa fechando denuncia a chegada do carteiro. Sozinha, Cecília estica o pescoço e pelo canto da janela da sala não vê ninguém, mas a caixa do correio está com a bandeira levantada.
– Isso são horas?! - Pensou.
Todos se conhecem na cidade onde nasceu. Cidade pequena tem dessas curiosidades. Ela sabia os horários do caminhão do lixo, do ônibus escolar e até da Dona Veridiana, uma senhora de oitenta anos que morava do outro lado da rua e não dispensava uma caminhada matinal. Poderia acertar seu relógio pela Dona Veridiana se quisesse, e, definitivamente, aquela não era a hora do carteiro.
Cecília vai até a rua, abre a caixa de correspondências e tira um envelope branco de dentro. No destinatário está escrito “Cecília”. Nada mais. Uma caligrafia familiar sem sobrenome ou endereço. Já estava a meio caminho de casa quando lembrou de abaixar a pequena bandeira vermelha. Voltou. Só então percebeu que aquela letra no papel era sua. Com um gesto automático virou o envelope, fazendo uma ruga aparecer em sua testa. “Cecília” novamente.
Caminhou até a casa e atirou-se no sofá - a ruga permanecia em seu rosto. Absorta, tentava lembrar quando teria escrito aquela carta, não havia dúvidas de que a letra era sua. Senilidade precoce foi uma das explicações.
Rasgou a lateral do envelope com cuidado, retirou o pequeno pedaço de papel dobrado ao meio e começou a ler:
“Querida Cecília,
Sei que deveria ter-lhe enviado esta carta antes, mas você me conhece. Continuo teimosa e acabo deixando sempre para a última hora. Quando acredito em alguma coisa, eu sigo o caminho até o fim. Mesmo que muitas pedras apareçam para me mostrar que o rumo está errado. Sei que você também é assim. Tudo o que sou hoje aprendi contigo, lembra? Mas não pensei que o desfecho das minhas escolhas fosse tão ruim. Não imaginei que perderia tanto tempo na ilusão de mudar alguém ou a mim mesma. Ah, se eu ainda tivesse a sua idade... Eu faria tudo diferente! Por isso, espero ter feito as contas certas e que não seja tarde demais. Você vai perceber que pessoas não se mudam, pessoas se completam... não pense no que passou e sim no que está por vir... O amanhã pode ser mudado hoje. Se isso acontecer, talvez ainda exista tempo para sermos felizes.
Com carinho,
Cecília.”
Os olhos estáticos não desgrudavam da carta mesmo depois da terceira leitura. Procuravam qualquer indício que a fizesse considerar o que tinha em mãos. Levantou-se e com passos pensativos foi até a cozinha. Serviu-se um pouco de café que estava na térmica. Morno. Deixou a caneca de lado. Abriu o armário e percebeu que não havia comprado pó. Se contasse para alguém, passaria por louca. Ela mesma achava que estava. Ainda com o papel na mão volta para a sala, liga o rádio e espia novamente pelo canto da janela. Uma tentativa inútil de descobrir como aquela carta havia parado ali. A voz no rádio deu a previsão do tempo, mas Cecília não ouviu.
Ela pára em frente ao espelho do corredor de entrada. Mesmo reconhecendo a maneira fantasiosa de como aquele envelope surgiu, não pôde deixar de pensar na sua vida. Seu rosto já havia mudado, seu coração já havia mudado. Estava cansada. Cansada de tentar, de acreditar, de esperar e de se sentir sozinha no final do dia. Olhou mais uma vez para o papel. “Pessoas se completam...”. Cecília compreendeu o quanto estava perdendo ao se acostumar com ausências em sua vida.
- É hora de viver! – falou baixinho para o rosto que a encarava no espelho. Chega de esperar por algo que nunca vou ter...
Pegou as chaves e saiu. Precisava ver gente, tinha urgência. Não tinha a menor idéia de onde ir. Talvez comprasse café. Talvez não. Sentia que podia ir aonde quisesse e no caminho até o portão não conseguia tirar os olhos da carta. Sorria. Ao passar pela cerca e pisar na calçada, trombou de frente com alguém. Com o choque, o corpo de Cecília ficou colado ao corpo de um homem que caminhava em sentido contrário e logo caiu para trás. Foram os dois segundos mais importantes da sua vida.
- Machucou? – Perguntou ele, enquanto esticava a mão para que ela levantasse.
Caída entre as chaves, a carta e seus sonhos, Cecília levantou os olhos para dar um rosto àquela voz que inundou seus ouvidos.
- Obrigada. Mas a culpa não foi sua, eu estava... – perdeu-se naqueles olhos - ... distraída.
- Peço desculpas mesmo assim... cheguei hoje na cidade e ainda estou meio ansioso. Não te vi passar pelo portão. Eu sou Pedro.
- Cecília.
Cumprimentaram-se com um aperto de mão. A carta já não tinha a menor importância, era daquele rosto que Cecília não conseguia mais tirar os olhos. Sentiu como se há muito o conhecesse.
- Percebi que estava com pressa. Você está bem? Não quero te atrasar mais...
- Imagina... nada de importante – respondeu enquanto arrumava o cabelo que caía sobre o rosto. Mas você disse que chegou hoje à cidade?
- Sim, cheguei hoje. Um almoço de negócios.
- Está só de passagem, então?
- Não, na verdade tenho um amigo na cidade e acabei virando sócio da cafeteria dele.
- Você é amigo do Bernardo?
- Conhece?
- Claro... quem não conhece a única cafeteria da cidade? – Riu.
- Então, hoje vim assinar os papéis e semana que vem faço minha mudança completa. Sempre quis morar em uma cidade pequena como essa.
- Também não troco essa tranqüilidade.
- Eu estava voltando pra lá agora... tenho que me acostumar com o funcionamento. Me acompanha? Assim, posso tirar a má impressão do tombo.
- Err... Claro, vou adorar! – Sorriu encabulada. Só espero que não chova para estragar nossa caminhada. Passou o dia todo prometendo.
- Não se preocupe, ouvi dizer que a previsão é de sol para os próximos dias.

Dani

Nenhum comentário: